Segue abaixo:
ElisabethRoudinesco - Assembleia
Nacional, [Paris] 15 de novembro de 2012.
"Excelentíssimo Sr. presidente da Comissão de leis, Sr. Relator, senhoras
e senhores parlamentares, gostaria de agradecer a honra que
me outorgaram me convidando para esta sessão sobre um tema ao qual já dediquei
muitos estudos enquanto historiadora sobre a família, sexualidade, psicanalise
e psiquiatria. Permito-me também falar aqui como “testemunho”, posto que minha
mãe, Jenny Aubry, pediatra, médica e psicanalista durante toda a sua vida
tratou de crianças em sofrimento: crianças abandonadas, em orfanato,
maltratadas, crianças doentes, crianças superdotadas, crianças aguardando
adoção e filiação.
Sou favorável a essa lei e como muitos de meus colegas sociólogos,
antropólogos e historiadores que os senhores já ouviram – penso em particular
como Irene Théry – fiquei surpresa com a violência com a qual, novamente, os
homossexuais foram estigmatizados em seu desejo de fundar uma família e,
portanto, de beneficiar, através do casamento, de direitos equivalentes aos de
pessoas de sexo diferente.
É possível compreender que os religiosos sejam contrários a esta mutação
da questão do casamento considerando que eles possuem uma visão imutável e
essencialista da família através da qual o pai permanece como o substituto de
Deus e a diferença bio-anatomica dos sexos o fundamento de todo direito
natural. Mas da parte de especialistas do tratamento psíquico que atendem
famílias perturbadas, me parece incompreensível, em particular quando eles se reivindicam
daquilo que foi e é na história da psicanálise a concepção freudiana da
família.
Nunca e em momento algum se encontrará na obra do fundador da
psicanalise o que uma parte de seus herdeiros pretende detectar atualmente: o
casamento homossexual seria o fim da família, seria uma denegação da diferença
de sexos, uma desgraça para as crianças, condenadas a ter pais perversos,
condenadas a ficar sem filiação, sem lei do pai separador, etc. Não somente
Freud não considerava os homossexuais como seres não humanos, como, em seu
tempo, manifestou claramente sua vontade de despenalizar esta forma de
sexualidade. Não somente nem por um instante passou pela cabeça dele que a
família pudesse se sustentar no primado da diferença biológica dos sexos uma
vez que esta é uma evidencia e não uma construção, como aceitou que sua filha
Anna criasse os filhos de sua companheira e considerou que se tratava ali de
uma família: estas são as palavras dele. Portanto, não façamos Freud dizer o
que ele nunca disse exceto ao mergulhar em um anacronismo que todo historiador
tem obrigação de criticar. E, aliás, sobre esse aspecto o meio
psiquiatra-psicanalítico está a tal ponto dividido que um abaixo-assinado
circula com 1500 assinaturas de psiquiatras, psicólogos e psicanalistas
manifestando indignação para com aquilo que eles chamam de homofobia de seus
colegas...
Na realidade, o que assistimos hoje, não é uma revolução que conduziria
ao desaparecimento da família, mas a uma evolução que ao contrario a pereniza:
o desejo dos homossexuais de entrar na ordem procriativa, ou seja, na ordem
familiar da qual haviam sido excluídos. Este desejo de normatividade que se
observa há cerca de trinta anos é a consequência da despenalização da
homossexualidade nas sociedades democráticas, mas também dessa hecatombe que
foi a AIDS. Querer se reproduzir estando inscrito na ordem familiar é também um
desejo de vida, de transmissão. E é esta aspiração à normatividade que incomoda
os oponentes à lei porque no fundo, ainda que não homofóbicos, eles gostariam
de manter hoje em dia a imagem do homossexual maldito incarnado por Proust ou
Oscar Wilde: na visão deles o homossexual deve permanecer clinicamente
perverso, ou seja, fora da ordem procriativa.
A abundância de culturas é, no entanto suficientemente extensa para
permitir uma infinita variedade de modalidades de organização familiar. De
outra forma dita, deve-se admitir que, durante séculos manifestaram-se no
interior de duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico
(proibição do incesto e outras interdições), não somente transformações
próprias à instituição familiar, como também modificações do olhar dirigido
para ela ao longo de gerações. Uma vez admitida esta definição cabe retomar a
questão histórica. Fundada por muitos séculos na soberania divina do pai, a
família ocidental se transformou em uma família biológica a partir do início do
século XIX com o advento da burguesia que atribuía à maternidade um lugar
central. A nova ordem familiar pôde então controlar o perigo que representava o
lugar do feminino, ao preço do questionamento do antigo poder patriarcal. Do
seu declínio, do qual Freud tornou-se testemunha e principal teórico, emergiu
um processo de emancipação que permitiu às mulheres afirmar sua diferença – especialmente
ao separar maternidade de desejo e de procriação e ao querer ter acesso ao
trabalho -, tomar as crianças como sujeitos e não como imitações de adultos e
aos homossexuais de se normalizar e de não mais ser considerados perversos.
Esse movimento gerou angustia e desordem específicas, ligadas ao terror da
abolição da diferença de sexos, com, no final do percurso, a perspectiva de uma
dissolução da família. No final do século XIX, de fato temia-se que as mulheres
ao trabalhar se tornassem homens e que a diferença de sexos fosse abolida. E
hoje em dia, se tem medo dessa mesma abolição que, nos dizem, viria dos
homossexuais que também desejam fundar famílias.
Mas o que funda a família no plano antropológico, não é somente a
diferença biológica de sexos – o que alias não envolve necessariamente a
existência de um pai real e de uma mãe real, mas ambos de substitutos – é antes
e, sobretudo, a proibição do incesto e a necessidade de troca: faz-se
necessário as famílias para que a família exista e faz-se necessário a
proibição para assegurar aquilo que nos diferencia do mundo animal: a passagem
da natureza à cultura. E que eu saiba nunca os homossexuais criando filhos renunciaram
a essa necessidade. E foi mais sobre essa questão que sobre a da diferença
biológica que Freud aderiu em sua época às transformações da família ao
aproximar as neuroses burguesas das tragédias antigas, ou seja à interrogação
de cada sujeito sobre sua origem: quem eu sou, de onde venho? Tal é a questão
de Édipo de Sófocles. De que sou culpado? Tal é a questão de Hamlet, os dois
heróis preferidos de Freud que de forma alguma criou uma psicologia
familialista. Quanto ao casamento, instituição especificamente humana e desde
então laica, ele é a tradução jurídica, legal, de certo estado da família em
uma época dada. Em nada imutável e sempre evoluindo, sempre em mutação como
mostram também as revisões que o Código Civil sofreu desde a sua instauração na
França em 1792. Em todos os lugares, nas sociedades democráticas, a instituição
do casamento esta em evolução como a família...
Para concluir, gostaria
de dizer que o que destrói a família, não é o desejo dos homossexuais de
integrar a ordem familiar, nunca é o desejo de fundar família, mas a miséria
psíquica, material moral, esta que vemos hoje e que conduz a derivas
assassinas, ao terrorismo, ao sectarismo religioso. Miséria distinta de
destinos trágicos próprios às dinastias reais que se destroem de dentro.
Victor Hugo, o mais popular escritor, o mais célebre no mundo, também o
mais republicano no final de sua vida, enunciou em Os Miseráveis, livro que todos deveriam ler hoje nestes tempos de
crise econômica e crise moral: o pai desempregado e explorado, a mãe escravizada,
a criança vagabunda. Mas, sobretudo, gostaria de assinalar que esse mesmo Hugo
que ao longo de sua existência aderiu a todas as formas de parentalidade
próprias à sua época - casamento por amor, adultero, pai, patriarca, avô, pai
infeliz diante da loucura de uma filha e a morte de outra, pai amante do amor –
forjou através de Jean Valjean, um personagem célebre sobre o qual deveriam
refletir todos aqueles que na essência argumentam que o bem-estar da criança
exige, a presença absolutamente necessária de um homem e uma mulher, de um pai
e de uma mãe.
Resgatado da miséria, habitado pelo desejo do mal, durante os dezenove
anos que passou na prisão, e depois convertido por um religioso à vontade de
fazer o bem, Valjean nunca tinha conhecido, aos 55 anos de idade, a menor
relação carnal ou amorosa. Virgem, ele nunca tinha amado nem pai, nem mãe, nem
amante, nem mulher, nem amigo.
Quando descobre através de Fantine, ex-prostituta, a existência de
Cosette, criança mártir, criança humilhada pelos Thénardier, ele vai procura-la
e torna-se seu pai, sua mãe, seu educador, seu tutor, enfim o substituto de
tudo que falta à criança sem amor: um único substituto que basta para assegurar
então a felicidade futura da criança mais miserável da terra. Nove meses: o
tempo de uma gestação. O coração do condenado, diz Hugo, está “repleto de
virgindades” e ao ver Cosette, ele sente pela primeira vez “um êxtase amoroso
que vai ao desvario”. Imediatamente, sentiu as fisgadas, ou seja, as dores do
parto: “Como uma mãe, e sem saber do que se trata.” Literalmente, portanto, ele
dá a luz a uma criança e o amor que ele sente é materno. Por sua vez, a
criança, tendo esquecido o rosto de sua mãe, só tendo conhecido socos, só tendo
amado uma vez na vida, não um humano, mas um animal – um cachorro –, olha para
esse homem que ela vai chamar de pai sem saber quem ele é e sem nunca saber seu
verdadeiro nome. Ela vai amá-lo além de qualquer conhecimento da diferença
entre uma mãe e um pai, como um santo, desprovido de sexualidade.
Atualmente, diante
de pedopsiquiatras “especialistas”, assombrados pelo espectro da abolição da
diferença de sexos, Valjean seria sem duvida visto como é pai mau ou uma mãe má
ou pior ainda como um pedófilo.
Então eu diria a todos aqueles que,
em nome de uma impossível normalidade, fustigam as famílias monoparentais,
homoparentais, “anormais”, divorciadas, que cada criança amaria tanto ter por
mãe e pai a cada vez um Jean Valjean"
Fonte: http://discursosperifericos.blogspot.com.br/2012/11/elisabeth-roudinesco-e-defesa-do.html
Fantástico, sem palavras!!
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